Sapatos de Pai

Cheguei ao Nepal numa viagem com demasiadas escalas para serem contadas. Aproveitei as promoções last minute para evitar sobrecarregar os patrocínios já de si escassos. Preparei-me dois anos para este desafio, certamente o maior por que passarei.
Saí do bimotor e ao sentir o vento frio a acariciar-me a cara não pude deixar de sorrir. Estava ali, conseguira! Só eu sabia os sacrifícios, as dores, o treino intenso que suportara voluntariamente para que o meu físico estivesse à altura do repto que me impusera. Nunca me sentira tão bem, tão cheio de mim.
O nome Anapurna é mágico; mulher feiticeira dificilmente se deixará conquistar. O masculino, Katmandu, oferece um labirinto de ruelas estreitas como se quisesse reter o calor que emana das casas. Todos os meus poros respiravam esta atmosfera mágica; dei por mim a assobiar por nada, estava feliz.
Passaram-se quatro dias na preparação da escalada e na recuperação do jetlag. A caminhada foi pacífica até ao sopé da montanha. A partir daqui as dificuldades iriam surgir, sabia-o.
Estava eu sentado junto a um tanque de água quando um monge budista se aproximou. Retirou um cantil por entre o vestuário laranja e mergulhou-o no tanque. A minha cara de espanto deve tê-lo despertado; olhou-me com um sorriso. “A água é potável” disse-me no melhor inglês de Oxford sem perder o sorriso.
Conversámos bastante. Sou bom fisionomista mas inicialmente não lhe reconheci os traços ocidentais, a cabeça rapada também não ajudara. Este inglês já estava há 15 anos no Nepal e vivia despojado dos confortos mundanos. A sua voz pausada combinava com o cenário, era tudo encantamento. Na despedida perguntou-me, “Porque sobes a montanha?”, e eu, procurando parecer profundo e eloquente, disparei a máxima recorrente, “Porque está aí!”. Ele sorriu novamente e disse-me, “Não, tu sobes a montanha porque a podes subir”. Esta frase iria acompanhar-me em toda a minha escalada. Ao fim do terceiro dia percebi que tinha calçado os sapatos do meu Pai.



No texto anterior tinha prometido falar no tema "Get on Your Boots", promessa cumprida.

15 comentários :: Sapatos de Pai

  1. Walking in someone else's shoes can be hurtful Putting ourselves in someone else's shoes can be meaningful.

    Why do birds sing? Because they can.

    Assinado: pé descalço

    Anónimo

    3/3/09 13:05

  2. Você já foi ao Nepal?
    Nofa, que cool deve ter sido *-*
    Viajar ao lado oriental da Terra... Um dia eu vou também, HAHA' :S
    Que bom que já vivestes a tua maior aventura. Escalar uma montanha no Nepal...
    A minha ainda vou viver, ainda...

    abragos, português

  3. pé descalço: muito directo e formal para um pé descalço... :D Mas acho que será sempre penoso caminhar nos sapatos de outros!

    Bertonie: a estória é ficção, aliás, tem essa categoria no final! Era algo que teria adorado ter feito, quem sabe, um dia, mas só para contemplar, sei bem que não conseguiria escalar o Anapurna!
    Abraços

  4. Bem, já percebi que a história é ficção, mas parecia bem real....

  5. e porque não conseguirias... como dizes no texto com treino... :P eu adorava ir ao nepal.. quem sabe... um dia...
    escreves de forma deliciosa.
    Su

  6. valentim: a ideia era essa, que cada um a vivesse com intensidade... de facto, como se percebe pelo texto, quando calçamos os sapatos dos nossos pais em crianças andamos mal, seria impossível correr, quanto mais escalar uma montanha! :)
    Abraço

    susana: seria uma desafio formidável, mas acho que os alpinistas de hoje já não têm o espírito necessário; escalam por egoísmo, de tal forma, que se alguém adoecer... morre! Não há espírito de entreajuda, só para garantir o sucesso... basta haver insucesso e deixam-no morrer onde estiver. Uma escória!
    Escrevo de forma intimista nestes textos, noutros escrevo de forma distinta. :)
    Bj

  7. Olha qd escreveres um livro com estes contos deliciosos avisa a Myosotis, sim?!

    **Beijinhos**

    Anónimo

    3/3/09 21:22

  8. Quer dizer que ao terceiro dia, nao conseguiu mais??

    sabes, quanto aos budistas... nao tenho simpatia por ninguem que nao produza, no minimo, o equivalente ao que consome...

    agradeço-te a visita e retribuo o beijo!!
    acrescento um :)

  9. Myosotis: hahahaha! Escrever um livro? Já viste o prejuízo, só nós é que o comprávamos! :P
    Beijinhos

    Just me, and ordinary girl: antes de mais trata-me por tu... caso contrário vou pensar que sou velho e só tenho 15 anos, sou precoce, mas um olho mais atento percebe que sou imberbe! :D
    Esta estória é uma ficção, aliás, classifiquei-a no final assim como poderás confirmar. Nunca minto, dá muito trabalho! :)
    Quanto aos beijos, aceites, e retribuídos, porque não, com um abraço! Afinal as pessoas andam todas carentes ou indiferentes! :)

  10. Ah, mas eu sabia que era ficção. Eu queria perguntar :ele (o personagem) nao conseguiu mais?...
    Did you understand me?
    :)
    :)
    :)

  11. Just me, and ordinary girl: o personagem "calçou" os sapatos errados, e não, não conseguiu mais. That's the idea! :)

  12. Taí! Gostei daqui! Despertou em mim curiosidade...
    Vou me atrever a te acompanhar!
    Abraços de LUiA

  13. Sim, calçaste os sapatos de teu pai. Bonita expressão. Quase profunda, a história. E um belo ensinamento do rapaz...

    abraço

  14. Daniel: calcei os sapatos para escrever a estória, e acredita que os do meu Pai são bem maiores do que os meus.

    Abraço

  15. A dor de cotovelo atenuou quando vi a etiqueta... ;)

    Anónimo

    1/4/09 23:01

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