Grito


Música para acompanhar o texto. Outros tempos, o mesmo grito...


Estava de saída. Cumprimentei o porteiro como sempre faço. Ele lembrou-me que o carteiro já passara e que tinha correio fresco, que não o esquecesse. Adoro esta deligência, considero-a um pequeno privilégio de um homem adorável. Trabalha no prédio há 30 anos, desde que ele existe, mantém a discrição e gentileza própria de um bomem humilde e bom.
Abri a pequena caixa, uma só carta sem remetente, selo ou algo que a distinguisse de um mero envelope. O porteiro assegurou-me que tinha sido o carteiro a deixá-la. "Estranho, muito estranho", pensei. No interior da carta encontrei um convite. "Lello & Irmão tem o prazer de o convidar para a apresentação de Grito, um livro de um seu conhecido que pretende reservar anonimato mas que faz questão da sua presença". A data de apresentação era a de hoje pelas 21h. O papel era timbrado, escrito à mão e tinha uma assinatura ilegível mas de traço elegante. "De quem será o livro, como vou de Lisboa ao Porto num dia de trabalho? Conduzo durante o jantar? Valerá o desafio?", estas e outras perguntas assaltavam-me o espírito.
Na carta havia um número de telemóvel para o qual telefonei e de onde recebi a confirmação do evento; há anos que a Lello não fazia uma vernissage como a de hoje, o convite era irrecusável. Acabei por aceitar o repto.
Não seriam seis da tarde e fiz-me à estrada. Chegaria antes das nove e aproveitaria uma estação de serviço para comer algo. Assim o fiz. Durante a viagem recebo um SMS. Sem a segurança devida resolvo consultá-lo em condução, bastou-me para isso reduzir a velocidade que ia muito acima do limite permitido por lei. "Ao chegares pergunta por Decus in Labore". O meu latim é péssimo, "O trabalho honra", tradução livre e não isenta de erro. Se tinha curiosidade agora temia a burla, o gozo de alguém.
Eu estudei no Porto por opção. Quis conhecer a capital do norte, perceber as suas gentes, ficar com uma abrangência diferente deste Portugal. Tive essa sorte. Do arrojo ficaram-me amigos e memórias. Circular no Porto dispensava o uso de GPS, pelo menos para os locais familiares, aqueles que frequentei como este que agora me chamava.
É impossível não sorrir quando se olha a fachada da livraria. Sempre achei que o Porto e Gaia têm melhores exemplares de Arte Nova do que Lisboa. O norte é mais exuberante do que o sul; as hipérboles na linguagem são a prova viva de um povo extrovertido, com o coração na boca, é o que temos de mais parecido com as gentes brasileiras mas sem os excessos na relação (1).
Entrei neste espaço quente, de madeira torneada, com escadas labirínticas vermelhas a evocar aventuras fantásticas dispersas nas estantes dos dois pisos. Imaginei J. K. Rowling, que ensinou e foi mãe no Porto, a conceber neste cenário os primeiros traços do mundo mágico de Harry Potter.
Dirigi-me ao balcão, mesmo ali à entrada do lado direito. Tudo parecia normal, clientes a entrar e a sair, outros a vaguear absortos em pesquisas cuidadas que faziam aqui e ali, mas nada, mesmo nada que indiciasse festa. Mostrei timidamente o convite. O espanto maior veio do funcionário que ainda tentou confirmar com uma colega se estaria errado. Mas não, nem o livro conhecia. Atrevi-me a perguntar o que era Decus in Labore. O rosto dele iluminou-se, seria útil e o cliente não teria vindo em vão. "É a nossa divisa, se subir ao primeiro andar poderá ver o nosso monograma com a divisa no vitral do tecto!", disse entusiasmado.
Subi as escadas, dois lances que desafiam a física pois criam perspectivas impossíveis. No primeiro piso olhei o tecto. Tudo se confirmava. Mas porque estava eu ali?
Alguém se aproximou de mim. Não teria mais de 20 anos. Sem dizer palavra deu-me para as mãos um pequeno livro e, de pronto, desceu as escadas. Cheirava a myosotis, há cheiros que não se esquecem. Nunca mais a vi.
Abri o livro. Páginas e mais páginas em branco. Folheei-o novamente. Nada! A frustração era grande e quando me preparava para fechá-lo caiu no chão uma pequena folha que me escapara na análise. A letra era a mesma do convite. "Não é um livro em branco. Tem um grito preso nas páginas que aqui estão, está encurralado e só tu o podes libertar!". Pensei na divisa, "Decus in Labore". O meu editor tem estranhas formas para me confrontar com a minha produtividade, mas teria tema, definitivamente! O grito era dele, o trabalho era meu. Hoje seria eu quem pagaria o jantar e já o via a sorrir junto à entrada. Seria fome?



A Myosotis desafiou-me a escrever sobre uma livraria que desconheço. Quando for ao Porto vou visitá-la!


(1) Neste texto menciono o Brasil, mas não de forma depreciativa como se poderia pensar numa primeira leitura. Como disse num comentário à Cris, adoro o Brasil, mas acho que tanta alegria não se reverte sempre em amizades reais. Há de tudo, como cá, mas penso que a minha análise não é exagerada se falarmos em médias.

13 comentários :: Grito

  1. O silêncio é o grito mais forte....

  2. Aprendiz,
    Já estive no Porto a trabalhar e contrariamente àquela ideia que se tem, adorei tudo, as pessoas na sua infinita prestabilidade, a cidade como a descrevem localmente de "pequena aldeia" onde todos se conhecem, a sua vaidade e o seu espírito lutador (as condições de trabalho são escabrosas e exploradas ao máximo).
    Quanto à Livraria, tenho realmente pena de apenas saber da sua existência por uma reportagem que vi e pelo teu vídeo, considero-a digna das mais fantasiosas histórias de ficção e essa do Harry Potter é-o sem dúvida.
    Também ando a escrever um livro, compreendo que a disponibilidade mental para escrever é mais importante e rara, por vezes, comigo, dão-me ataques de escrita, sejam 14h ou 04h da madrugada, tem de ser naquele momento, posso também passar mais de um mês sem escrever uma palavra, sem com isso parar de engendrar toda a trama na minha cabeça, isto tem muito que se lhe diga...
    Grito; um nome fantástico, um titulo misterioso e um história que promete, será?
    Bom fim de semana e beijocas

  3. Mais uma bonita história, dentro do que nos tem habituado. Estou a gostar muito destes textos.
    Quanto à pergunta que me deixou! A Armillaria é um fungo patogénico (com capacidade de matar plantas). É necessário o estudo no sentido de se obterem fungicidas eficazes que possam eliminar este inimigo das plantas, pois se o deixarmos a "solta" pelo campo ele vai destruir muitas árvores.

  4. Bem, mas que mistério...Adorei ler da primeira até à última palavra:) beijo

  5. E é assim. Um grito, que ao ser solto, enche as páginas de uma vida.

    Assinado: Cemremos

    Anónimo

    7/3/09 13:06

  6. Cris: ou o que mais fere!

    Karochinha: sim, eu também adoro o Porto. Os seus cinzentos, a Ribeira, a Foz, os pregões, o sotaque, o calor das palavras. E sim, o Porto fez-se de trabalho, do afastamento da Capital e dos vícios desta, mas criou outros, permitiu-se criar alguns industriais que se serviram do trabalho de outros, veja-se o Vale do Ave, uns empresários bimbos e sebentos de ferraris e com empresas onde o trabalho infantil era até há pouco consentido.
    Escrever um livro não é para todos. Acho que não tenho qualidade para tal. Gosto de escrever, acho que não escrevo mal, mas detestava escrever um livro e ter de dar os exemplares à família e amigos por falta de leitores. :)
    Para mim, o que é verdadeiramente fácil é fazer a trama, sei que poderia estar ininterruptamente a escrever, haveria sempre matéria.
    Quanto ao título, é este, um grito calado! :)
    Beijocas

    Valentim: eh pá, trata-me por tu! Eu sou um puto! :D Eu também gosto que vás aparecendo! Afinal este espaço pretende ser um encontro de amigos, sei que alguns com o tempo assim vão ficar.
    Achei fascinante saber que havia um fungo capaz de destruir florestas na escala em que relatas. Não pares de nos instruir. :)
    Abraço

    Lisa: sem gritos, sem segredos? ;)
    Beijos

    Cemremos: nem tanto, basta um livro e pequeno... mas que o aprisione, pois solto é perigoso! :D

  7. É vero! Nada vale tanto a pena quanto silenciar e contemplar o que há de mais simples. A gente fala demais...

  8. Obrigada por aceitares o desafio, Aprendiz! Ficou fantástico. O resto tu ja sabes :)

    **Beijinhos**

    Anónimo

    7/3/09 22:56

  9. Excelente escolha musical, eu ADOOOOORO Nouvelle Vague! :)
    E...Viva o Porto e as suas livrarias! :D

  10. História muito bonita Aprendiz. Fiquei muito curiosa, li de um só fôlego até terminar. :)

    A Livraria Lello é magnifica. No ano passado fiz um trabalho sobre turismo no Porto. Teve de incluir imagens da dita livraria.

  11. E conseguiste prender-me até à última palavra!
    Apreciei imenso.
    O elogio está no teu texto... não no meu comentário.

  12. Adorei o texto. Prendeu-me por aqui.

  13. Cris: eu adoro o Brasil. O que acho, é que tanta alegria não se reverte sempre em amizades reais. Há de tudo, como cá, mas penso que a minha análise não é exagerada se falarmos em médias. Concordas?

    Myosotis: escrevi sem saber o resultado final. Até eu me surpreendi com o final, pois fui escrevendo de rajada. O processo criativo é giro; de facto, as situações aparecem mais facilmente quando estamos a escrever outras, é como se estivéssemos a semear para mais tarde colher. :) Foi um prazer aceitar o desafio.
    Beijinhos

    Lu.a: Eu também, mas o mérito foi da Myosotis. Tirei a música do blogue dela.
    O Porto é uma nação! :D Estudei no Porto, embora viva em Lx!

    Sanxeri: espero que tenhas respirado no final! :) Eu ainda não a conheço, mas agora fiquei com vontade, vá-se lá saber porquê? :)

    mfc: és um gentleman! O teu blogue é das coisas mais inteligentes que tenho lido por aqui. As citações e as observações certeiras às fotos. Ter-te como leitor é um privilégio!
    Abraço

    Anuska: eu não prendo ninguém! :D És sempre livre de voltar, acredita que o prazer é meu! :)
    Bjs

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