Caixa de Pandora


Para acompanhar o texto; Sonata ao Luar de Beethoven


O Carocha circulava por entre os plátanos que emparedavam a estrada. A noite mostrava aqui e ali as estrelas que resistiam à noite de luar. Passaram os portões escaqueirados e o caminho levou-os à casa rodeada por um relvado algo descuidado. Numa das alas do jardim um chorão e alguns carvalhos projectavam sombras no relvado subindo, algumas delas, as paredes de pedra da casa centenária em desenhos erráticos.

Entraram e subiram para o quarto sem a pressa que denotasse o ânimo que os movia. A divisão era ampla, demasiado ampla, onde o pé-direito elevado se impunha à decoração minimalista.

Uma parede estava completamente coberta por uma tela que ambos pintaram. Na metade dela surgia uma caixa aberta de onde caíam algumas folhas desordenadas. Uma ampulheta jazia quebrada por cima delas deixando a areia fina escorrer até ao soalho. Ao alto, um céu invulgar projectava cores alegres num movimento inquieto. No canto direito, junto ao que ele pintara, uma for de lótus pendia sobre uma mala envelhecida. O cadeado apresentava uma ranhura em forma de interrogação embora, se se atendesse ao detalhe, se vislumbrasse um sorriso.
As cores dele eram mais escuras, mais pausadas, mas não sem vigor. Um tronco atlético suspendia-se num trapézio já no limite da imponderabilidade. Um dos braços rasgava o céu dela tocando ao de leve o sol com o indicador, num gesto que indiciava cumplicidade mas que se negava a tomá-lo. Da outra mão, firmemente agarrada ao trapézio, caía uma margarida. Por baixo, num parapeito de uma janela aberta, esperava-a uma pequena caixa aberta com a inscrição C.P. Três livros caídos lateralmente, uns sobre os outros, completavam o parapeito. Num deles sobressaía um marcador onde se podia ler distintamente a palavra “lógica”. Mais abaixo, um instrumento invulgar em madeira colmatava o quadro. Percebiam-se as roldanas, as articulações em ferro forjado, mas não a função.

A portada aberta da varanda deixava entrar a luz ténue do luar. Não precisariam de mais. Sentaram-se no soalho e ela agarrou um livro que andava a ler há pouco. Olharam-se firmemente. Ela abriu o livro e, inesperadamente, rasgou com zelo uma das folhas. Dobrou-a com todo o cuidado até a folha não ser mais do que um pequeno quadrado de papel. Agarrou o braço dele e abrindo-lhe a mão disse-lhe, “está tudo aqui…”. Ele cerrou o punho e afirmou, “nunca o vou ler”. Sorriram num olhar que dispensava palavras.

“Eu também tenho uma surpresa para ti…”, ela franziu a testa como se esperasse dele esta provocação. Subiram ao sótão, um lugar só deles, iluminado por uma pequena clarabóia. Ela acercou-se da luz que dali emanava. O rosto cobriu-se de um branco pálido, a desilusão de não vislumbrar algo que procurava.
“O que se passa?”, perguntou-lhe ele num tom indeciso. “Não vejo a lua… era essa a surpresa?”. Ele, sem responder, deitou-se no soalho colocando a cara onde os raios terminavam. Percebendo a intenção, ela debruçou-se sobre o corpo dele e, assombrada, caiu ajoelhada. Os olhos de mel esverdeado eram agora pretos, profundamente pretos. Aproximou-se lentamente da cara dele. Agora tudo era mais nítido; nos olhos cintilavam as estrelas que os raios transportavam, nunca vira um céu assim! Na extremidade de um deles veio o espanto, conseguia ver a lua. E no deslumbramento de a contemplar, a lua soltou-se e escorreu pela face dele. Num movimento delicado apanhou a lágrima com um dedo. Pegou-lhe na mão ainda cerrada e depositou a gota no quadradinho de papel. Sorriu como uma criança e disse-lhe, “agora já o podes ler!”.

15 comentários :: Caixa de Pandora

  1. Comunhão.

    Ali, sentada naquele banco, deixou-se levar pela música do mar, tocada em notas laranja. O vento tinha ido à procura de outros areais. Ela deixou-se estar, os olhos cheios de sal. O mar chamou-a "Vem, engrossa as minhas ondas com as tuas lágrimas!". Um dedo segura agora uma lágrima do tamanho de uma onda. Inundam-se agora as palmas das mãos. O mar insiste " Vem! Depois de minhas, deixarão de ser tuas." Ela levanta-se, caminha em direcção ao mar. Molha os pés, debruça-se e lavando a cara, sorri e grita " São nossas!"

    Assinado: The reader

    Anónimo

    25/2/09 07:53

  2. Oi, obrigada pela visita.

    Eu tb bem que gostaria de ter um bichinho desses para o verao.

    Qto a Sonata, é bonita!

    Boa semana

  3. Só conhecemos o outro através da sua dor, ou só isso nos confere esse direito? Nunca imaginei um céu visto assim e se forma alguma existe de se oferecer a lua, será seguramente numa lágrima.

    Obrigado pela visita, voltarei aqui com mais tempo.

  4. Tudo depende dos olhos que vêm, não dos que olham apenas...está lindo!!!
    Beijocas com Lua ;)

  5. Excelente!! A musica e o texto! :)

  6. Fiquei aqui a olhar para o cursor a piscar nesta caixinha sem saber muito bem o que escrever. E só tenho mesmo uma palavra para te dizer: LINDO!

    **Beijinhos**

  7. está fantástico!

    e não é que a música acompanhou mesmo bem a minha leitura (da-lhe "aquele toque")

    :)

    belo blog aqui tens,
    parabéns

    belo post,
    belo blog

    croqui ®

  8. The reader: andas a ver folmes a mais! :D Gostei do complemento, tal como o meu texto é uma bela ficção.
    Abraços ou beijos, conforme for o caso

    Georgia: o texto é que é pastelão! :D Volta sempre, mas lê! ;) E se não gostares, diz! :)
    Boa semana

    António: foi o céu que me veio à cabeça e concordo contigo, é uma boa forma de oferecer a lua.
    Abraço, volta sempre

    Karochinha: sem dúvida; os olhares falam! E um cego, como presentirá as coisas? Precisará de muito mais tempo para reconhecer alterações no timbre. Será, assim, facilmente enganado. Há olhares que não se falam.
    Beijinhos

    Lua: excelente para o texto é exagero, mas agradeço a simpatia, mas quanto à música não encontro adjectivo melhor do que genial! ;)

    Myosotus: ainda bem que gostaste. :) É bom saber que o que escrevemos pode, de alguma forma, fazer sorrir os outros.
    Beijinhos

    croqui: a música dá-lhe o tempero que o texto não tem! :) Quanto ao resto agradeço, volta sempre, afinal um croqui é mais poderoso do que as palavras; o que usas, um moleskine?
    Abraço

  9. Olá! Parabéns pelo texto.. a forma como usas as hipálages (a minha fig. de estilo favorita) revela grande sensibilidade.. passarei por aqui mais vezes.. tens um Blog muito interessante.

    Abraço!

  10. Música e texto combinaram bem
    Obrigada pela sua visita no meu
    Seja sempre bem vindo

    Boa tarde pra você
    Beijos

  11. Para começar e em jeito de brincadeira, onde raio já se viu um sistema de comentários como este? Rifa-o!

    E agora diz-me tu, que comentário possível e inteligente a um texto destes? Já conheço a qualidade da tua prosa ficcional; é para ser lida e saboreada. Just that!

    Anónimo

    25/2/09 22:09

  12. Karlytus: devo ter lido Eça a mais... mas se da minha escrita ficar algo que mereça ser dito, em hipálages ou não, que seja o esforço de um aprendiz voluntarioso! Tudo o resto é uma hipérbole! :)
    Abraço

    Gabyfisher: as minhas deambulações por outros blogues são passeios erráticos; os comentários ficam nos "povoados" que me merecem estudo, contemplação ou surpresa. :)
    Beijos

    Maria: não comentas um chocolate ou um robalo ao sal? Que raio de palato é esse?! O cozinheiro vai acabar por se despedir e vender-se a um fast-food qualquer; hamburger por hamburger... ;)

  13. Linda esta ficção!!!
    Nunca recebi nada assim, penso enquanto sorrio! ;-D

  14. Xiiiiii... o comentário no. 13!!!...obriga-me a comentar outra vez!!! ;-DDD

    Desta vez para dizer algo que não é nada original: Adoro a tua forma de expressão!!!

    Beijinhos,

  15. Lurba: espero que to façam um dia, era original, acho. Quanto ao comentário 13... será sempre o comentrário 13! :D Quanto à minha forma de expressão... as rugas ganham-se com o tempo! :D
    Bjs

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