ab absurdum

Ela não teria mais de 26, 28 anos. Tinha uma daquelas belezas que não se reconhecem de imediato, mas que nos vão arrebatando à medida que os detalhes se vão revelando. Quantas vezes, quantas, senti a surpresa agridoce de olhar uma estranha tal a novidade de um gesto, de um olhar, de um sorriso? E as palavras? Algumas ditas, outras que escondia num jogo subliminar para que se pudessem adivinhar ou não consoante o seu desejo. E os meses foram passando nesta admiração permanente, um enamoramento estudado, quase provocado não fosse a minha rebeldia cigana.

A distância que nos separava quebrou-se como por destino para que tudo fizesse sentido. E do esporádico fez-se rotina, não uma modorra monótona, antes a rotina do imprevisto. Não houve um dia igual, algo que se programasse com mais de uma semana de distância. Nem as férias. E nesta inconstância que me cativava sobrava algo verdadeiramente diabólico, imprevisto, que a minha curiosidade não tinha descortinado.

O livro repousava sobre a cadeira Philippe Starck laranja transparente que sobressaía no confronto com a parede alva que lhe sucedia. O volume fora ali deixado intencionalmente para que lhe pegasse, hoje estou certo que sim. A cadeira, essa, serviu-me de assento. Folheava agora o livro do curso de psicologia de uma faculdade qualquer com a calma que se tem quando se espera alguém que ainda dorme. No hotel seria eu e o recepcionista quem despertava a manhã.
Não reconheci ninguém; caricaturas, poemas, pensamentos que os amigos iam deixando nas memórias de cada finalista. Na dobra da página 91 veio o embate; primeiro a sensação de algo familiar, depois o sabor azedo que me percorreu a língua em simultâneo com a dor involuntária no abdómen. Não estivesse eu sentado e teria caído.

O retrato era o meu, mais novo é certo, mas era eu! Ao meu lado, num cabrio estilizado, uma mulher e duas crianças seguiam uma tabuleta que apontava para Londres. Os poemas sucediam-se com palavras repetidas: “amor”, “papá” e outras mais prosaicas que evocavam os tempos de faculdade.

Senti-me a desfalecer. Lancei as mãos ao assento da cadeira para me equilibrar. O livro acabou por cair aberto com a capa e contracapa para cima, como que a esconder-me a sua verdade. Levantei-me e, com passos cuidados e inseguros, caminhei até ao balcão. O recepcionista observava-me disfarçadamente num treino próprio de quem zela por outros.
- Desculpe, pode dizer-me em que quarto estou?
- Um momento... hmmm... no 312... sim, definitivamente, no 312!
- Pode parecer-lhe estranha a pergunta, mas qual o nome em que estou registado?
- Não está!
E sorriu placidamente como se me conhecesse há muito.
- Como é? Não estou?
- Como sabe nunca o inscrevemos por causa do registo de polícia...
- Da polícia?
- Sim. Passa-se algo?

Agora tudo se movia a uma velocidade estonteante; eu e o recepcionista estávamos no centro do carrossel e as cadeiras, sofás, quadros, tapetes e restante mobília rodavam ao som do vento a bater em portadas soltas. Senti-me enlouquecer.

Inesperadamente, como num qualquer espectáculo menor, vejo-a surgir num dos cantos da sala em movimentos sensuais seguidos por um projector. Tudo isto era demais, mesmo para mim que me considerava o último atol do pacífico.
- Promete-me uma coisa!
Dispara a frase sem me dar tempo de me recompor.
- Quando vieres para os teus hotéis, não me deixes sozinha.
Lancei-me sobre o balcão e apanhei o registo dos quartos. Nenhuma referência ao quarto 312, nenhuma! Ao fechar o registo confrontei-me com o óbvio. Eu trabalhava ali, mas como?
Olhei para trás e junto à cadeira ainda laranja e transparente, ainda emparedada contra a muralha branca, nada, nem vestígio do livro caído!

A pancada veio de pronto; primeiro no peito, depois em todo o corpo. Senti-me projectado para cima na direcção de uma luz tão intensa que me cegava. Perdi as referências e neste caos não era o medo que me tomava, antes o espanto.

- Olá!
Senti-me no vazio, agora era a escuridão que dominava.
- Bom-dia!
Entreabri os olhos e mirei a silhueta debruçada sobre mim. O fim-de-semana ia acabar e com ele a curta viagem ao Alentejo. Virei-me de lado para me espreguiçar melhor. No chão, ao lado da cama, o meu saco deixava antever um livro do curso de psicologia. Seria hoje que a confrontaria com a evidência; afinal ela era casada e tinha filhos. O problema não era a mentira, mas sim eu fazer parte dela.



Por falar em absurdo, muitas estórias são assim!


Nota à navegação: os personagens desta estória são ficcionados. Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência. O produtor reserva-se o direito de se defender se lhe atirarem livros! :D
Aliás, desafio-vos a interpretar o final da estória. De facto, pode ser o que quiserem.

19 comentários :: ab absurdum

  1. Só consigo pensar no adjetivo perturbador para descrever vossa história. Possível. Sim. Possível também é um adjetivo!
    Mas, além desses, magnífico. :D
    Aproveitou o aniversário?

  2. Teia: olá! Sim, perturbador seria um bom adjectivo. Possível, sim, seria outro! Improvável, eu não descartava este! ;)
    Sabes, eu imaginei alguém que projecta no sonho a sua angústia, o pesadelo. A verdade, a que o confronta quando acorda, essa, pode ser a que tu quiseres. O que achas que será?

  3. Teia: esquecia-me! O aniversário... foi sublime, com amigos, naturalmente, mas pela primeira vez na minha vida organizaram-me... dois jantares... hahahahaha... e fui aos dois!!! :D
    Sim, eu sei, sou um gajo com sorte; sempre fui!
    Beijos

    P.S. O adjectivo seria impossível, mas de facto aconteceu! :)

  4. Contigo? Caro Aprendiz, tens me saído a um gajo com propensão à bela safadeza? hahahahaha
    De qualquer forma, delicioso texto. Vim ler novamente. Ao texto e aos vossos comentários.
    ;D

  5. Teia: estás-te a confundir... eu disse dois jantares com amigos (de ambos os géneros)! :)
    Um safado jamais faria publicidade! ;)
    Há vantagens de se ser solteiro que dispenso, são muito fáceis! ;)
    Beijos

  6. Há sempre a publicidade sutil. E sutileza é privilégio de poucos. Poderia ser teu caso.
    Quanto ao jantar com os amigos, não eliminaria a hipótese de outros momentos.
    Mas, sim. Enganei-me.
    Agora, se o final da história é de livre escolha do interlocutor... tudo pode ser. :D

  7. Teia: a publicidade subliminar é punida por lei, tal como a falsa! ;D
    Beijos

  8. Gostei muito, entre ficção e realidade, não importa.

    Um bj,

  9. Pi: a blogoesfera não deixa de ser um mundo virtual. :) As minhas estórias bebem sempre do que vivi, do que leio, ouço e vejo. Mas, no essencial, é pura criatividade. Contudo, as emoções estão lá, espero!
    Um beijo

  10. Verdade ou mentira?...............rs

    Muito gostoso de ler!
    Entre a realidade e a imaginação, o importante é viver cada momento!

    beijo grande

  11. Cris: ficção total! :)Era lá eu capaz de ter um sonho destes! :D
    Quanto a viver cada momento da vida, não posso estar mais de acordo.
    Beijo grande

  12. Pergunto-me porque é que o livro estava lá de propósito..? E tu, sofrias de algum tipo de amnésia? Não te lembravas que os filhos afinal eram teus?:)

    beijo

  13. Saudades de vir aqui Seu João! hehe
    Abração.

  14. Lisa: tu, logo tu, hahahaha! Só pode ser provocação, saudável, claro! Sim, só podia ser amnésia. :) Neste sonho ficcionado, projectei a realidade dela (também ficcionada - se a conheceres, avisa!) na minha. Esse é o segredo. ;) Ele dormia angustiado com a verdade oculta dela; agora ele teria de a confrontar com o risco, real, de tudo terminar.
    Quanto aos filhos, sou um ignorante! ;)
    Beijos

    Cleyton: tá em casa meu irmão! Quer uma caipirinha? :D
    Abração

  15. Lisa: ah! esquecia-me! O livro estava lá de propósito, pois fora eu que o colocara lá... afinal o sonho era meu. ;) Porquê de psicologia? Porque é a suprema ironia, não achas?

  16. :)

    Sabes porque é que pensei em amnésia?

    "Quantas vezes, quantas, senti a surpresa agridoce de olhar uma estranha tal a novidade de um gesto, de um olhar, de um sorriso? " - como se cada vez que olhasses para ela fosse sempre a primeira...

    "Não reconheci ninguém; "

    "O retrato era o meu (...)uma mulher e duas crianças (...). Os poemas sucediam-se com palavras repetidas: “amor”, “papá” e outras mais prosaicas que evocavam os tempos de faculdade.
    Senti-me a desfalecer" - foi isto que me levou a pensar em amnésia..porque eu interpretei como se esse fosse o momento em que ao ver o seu retrato e as duas crianças aí ele pensou pela primeira vez que se calhar tinha filhos.
    E depois o episódio com o recepcionista...o facto de não se lembrar do quarto, nem do que estava lá a fazer, a confusão mental, os breves momentos de lucidez..

    Foi por isso que pensei logo..amnésia anterógrada. As interpretações que uma pessoa faz...enfim:)

    beijo

  17. Lisa: eu pensei o texto de forma diferente; claro que a desorganização mental durante o sonho é semelhante, em muitos casos, à amnésia. Aliás, a forma como interpretas este texto é válida. Este é um texto para ser acabado por cada um de nós, tem margem de manobra para isso. Quem sabe se a maioria dos leitores não leu como tu?

    Beijo

  18. Genial, eu diria mesmo que o âmago de tal expoente máximo (importas-te que assim lhe chame(?)), poderia ser o desabrochar de tanta consciência que por ai anda.

    No entanto admito, cheguei a pensar que o homem tivesse morto, portanto, tivesse chegado ao inferno e o demo cheio daquela ironia (so British), lhe tivesse pregado algumas partidas para mal dos seus pecados, ou coisa que o valha...
    :)

    Cruzes credo!

  19. O2: podes chamar o que quiseres :) e concordo com o teu ponto de vista. O desabrochar da consciência de muitos face à evidência. No fundo, tudo se resume à confiança... tê-la e merecê-la!

    Quanto ao morto... hahahaha... tenho um texto muito a propósito e que colocarei aqui mais tarde.

    Beijos

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