Vermelho de melancia

Ele foi o primeiro a chegar, sempre fora pontual. O restaurante não era frugal, nem a ementa, o branco incial que tomava conta da vista era só ilusão, em cada recanto havia um detalhe, minimalista é certo, mas surpreendente.

Olhou ao redor a procurar algo, nos olhos a expectativa indisfarçável que o acompanhava desde criança quando a surpresa era esperada, desejada. O seu olhar cruzou-se com o meu mas não parou, não era a mim que ele procurava. Eu, pelo contrário, não pude deixar de olhar para ele; há homens que vemos mesmo quando não os olhamos. A entrada fora triunfante, "la piece de resistance" de uma sala já de si perfeita.

Os meus 30 anos foram lutados e a minha beleza esconde há muito o que as mão sabem. Sim, dizem-me bela e eu sinto-o nos outros, respiro-o no olhar e vontade dos que me rodeiam.
Agora, ignorando-me, deixou-me ainda mais sedenta, como se um desejo de o possuir fosse um imperativo.

O empregado acompanhou-o até à mesa ao lado da minha. Não pude deixar de reparar no sorriso de soslaio que o chefe de sala me lançou, como se pressentisse o crime, como se fosse o algoz a preparar o cadafalso.

Pegou na cadeira e arrastou-a como quem desliza algo que sempre fora seu; era rei num palácio branco, alvo, sem rival. Sentou-se. Ajustou a cadeira à mesa num pequeno gesto, quase imperceptível. Só agora reparei nos detalhes. O fato preto, italiano certamente pelo corte arrojado, as calças que mostram uns sapatos sem mácula, como se os pés tivessem sido moldados para que eles nunca enfolassem a pele.

Mirei a mesa com descrição pois pressenti que olhava para mim. Nós, ao contrário dos homens, nunca nos denunciamos sem vontade.
O meu vestido é alegre, jovial, uma explosão de cores e alegria. Vim sem maquilhagem, com os cabelos soltos, e porque a noite foi em claro não desisti dos óculos escuros, melhor agora que precisava de indagar sem ser desmascarada.

Dizem que é discúpulo do Ferran Adriá, coisa que nunca confirmei, mas adoro quando o chef vem à mesa cumprimentar; começa sempre por enaltecer a vista como prémio a resistirmos à sua comida. Depois vem a fecunda descrição do que comemos, como se a confeccção só terminasse com a criação de novos sentidos.

Distraí-me, bolas, onde é que ele está? Olhei ao redor mas nada, nada mesmo. Na mesa uma fatia de melancia fora deixada ao acaso. Bolas! Perdi-me assim tanto tempo? Como? Ele nem comera?

Por momentos senti-me atordoada, como se a razão me faltasse. Procurei um cigarro na carteira, precisava de fumar urgentemente; não era vontade nem pânico, estava perplexa!

Levantei-me e dirigi-me para o terraço sobre o mar, talvez a 50 metros a pique acima do azul, uma varanda no imponderável. Dobrei-me ligeiramente para acender o cigarro.

Não, estava a enlouquecer, não pode ser! Levantei os óculos para ver melhor. Mas sim, na saia uma nódoa pequena, nada que me tirasse o dia numa saia alegre. Envergonhada, sem deixar cair a compostura, levei um dedo aos lábios e esfreguei-o de seguida na nódoa. Nada, pouco saíra. Repeti o gesto.

O rubor invadiu-me a face como se estivesse a arder em febre. De repente tudo rodava à minha volta, e se o terraço convidava agora oferecia-me vertigens, náuseas, senti-me a desfalecer...

Apercebi-me de um movimento na sombra da cobertura. Senti o gesto pelo canto do olho, já no limite da minha visão. De pronto, uma mão surge do nada com um isqueiro como se estivesse ali para me servir. Ele, sorrindo, disparou: sabia a melancia?





Nota: a mudança continuada de humor, por vezes no mesmo parágrafo, a utilização intermitente do presente, do pretérito perfeito e do mais-que-perfeito, foram as ferramentas que tive à minha disposição para escrever como uma mulher. Tarefa impossível dirão, mas a tentativa foi honesta!

10 comentários :: Vermelho de melancia

  1. É que quase que me enganavas com este texto travestido lindamente escrito.

  2. Sabia a melancia?
    O que quer dizer isso?
    O texto tá legal, mas não saquei a última frase.
    Um abraço.

  3. mfc: hahahaha! Obrigado pelo elogio! Se fosse homossexual teria sido mais fácil, assim tentei sair da caixinha e imaginar porque sentir, isso, não posso.
    Abraço

    L.S. Alves: 1. ele acabou a refeição com uma fatia de melancia. 2. ela tinha uma nódoa de melancia na saia. 3. seriam amantes? ;)

  4. Será que nenhuma mulher vai comentar este post? :)

  5. É um blind-date?
    Está muito bem! A forma como está descrita a entrada do homem bem que parece escrito...por uma mulher :)))E adorei a "tirada" final :))

  6. 1. Eu gostei, já que é uma beleza balzaquiana a da personagem ;)
    2. alteração de humor... humpf! Não comentarei! rsss
    3. eu gostei da visão intimista que o texto deu sobre um almoço que esconde várias intenções.
    Agora, permita-me viajar: amantes ou não, quantas batidas violentas no coração a personagem sentiu ao ver esse homem chegando a lhe amparar? Ui! Até arrepiei! hahahahahhaha ;)

  7. Lu.a: blind date? Sim, pode ser o que quiseres! ;) Começo a ficar preocupado... parece escrito por uma mulher???? :D
    Obrigadoooooo! :)
    A tirada final é o sal da estória, acho!
    Beijinhos

  8. Teia: balzaquiana... eu adoro-o! :D Aliás, adoro o Eça, esse sim, depois dele não há nada para inventar no português, uma chatice.
    A tua viagem... pode levar-te aonde quiseres! Há quem sinta batidas, há quem fique sem ar, há ainda quem fique com a boca seca... por falar nisso, vou beber uma copo de tinto, do bom... para abrir o fim-de-semana em beleza. :)

    Beijos

  9. Ah! Caro Aprendiz, abra-o por mim! Acompanho-te em distância no bom tinto.
    Você e Eça...
    Leste A Mulher de Trinta Anos (Balzac)? Ah! Ainda bem que alguns autores reconhecem que a mulher pode ter uma beleza interessante, mesmo depois do frescor (?!) dos dezoito! hahahahahahaha

    Bom fim-de-semana! O meu passarei trabalhando! :D

  10. Teia: Balzac? Ele foi meu colega de quarto! :D
    A questão é outra! Há mulheres com menos de 30 anos? ;) Eu como sou teenager nem sei!

    Beijo e boa semana!

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