(se este texto tivesse música... poderia ser esta)
Pegou no cinzel e começou a esculpi-la. O mármore estava em bruto e nada indiciava que pudesse conter tamanha beleza, tamanho segredo. As primeiras pancadas fizeram-lhe tremer as mãos. A pedra era dura e ia obrigar a redobrado esforço. Nada o faria vacilar, afinal ele queria vê-la, senti-la.
Afastou-se um pouco para perceber a forma que dali brotava. Ali estavam os dois, pedra e escultor num descanso próprio de quem se estuda. Num gesto ameaçador ele avançou para o mármore e saltou para cima dele. Os veios da pedra pareciam latejar sob as suas botas gastas. Pediam-lhe luta, que a dominasse, que a tomasse sem pudor ou hesitação.
Num impulso impensado martelou a pedra com um golpe certeiro e sentiu-a ceder de mansinho. O rasgo quebrara a pedra em duas. O pedaço menor deslizou do topo e foi estilhaçar-se no chão; no impacto o apêndice explodiu em pequenos fragmentos que coloriram o soalho com um pó branco. Para evitar a queda, saltou para o solo em desequilíbrio num reflexo felino. Nas costas, uma lágrima de suor escorreu para lhe lembrar que tudo tem um preço.
Não iria desistir. Não agora que a pedra ganhava forma. O cinzel voava freneticamente nas mãos inspiradas por um sonho, vê-la ali! E a pedra ia deixando cair o casulo para despertar a crisálida. As mãos, essas, doíam-lhe de tanto moldar. Sentia agora o exercício em slow motion; a dor acompanhava o cinzel em movimentos circulares que caiam sobre a pedra. E no movimento de regresso a dor tornava reforçada, como se a pedra a alimentasse num grito desflorado.
Parou, olhou-a novamente. O cinzel escorregou-lhe da mão e ao cair no chão deu duas piruetas que ele acompanhou com os olhos meio absortos. Não podia ser, não fora ele que fizera tamanha beleza. Ela, nua e alva, enfrentava-o deitada sobre um dos lados, como se tivesse estado sempre ali à sua espera. A mão dele acompanhou-lhe o perfil e o frio da pedra apertou-lhe o peito no desejo de mais vida, como se implorasse por alma.
As roupas caiam agora desordenadas ao seu lado. Ambos nus, ambos crus. Abraçou-a e, deitando-se ao seu lado, colocou-lhe uma perna por cima como se a pudesse ter mais assim. Os lábios dele procuravam agora os que criara. E assim ficou num torpor enamorado.
Fechou os olhos e sentiu, o coração que batia não era o seu. Abriu os olhos; não, não podia ser! Os olhos não lhe obedeciam, estavam selados e não abriam. Tentou afastar-se, mas não, os corpos estavam cravados. Um arrepio percorreu-lhe o corpo, sentia a força dela a aprisioná-lo. A emoção deu lugar ao medo e se a quis, não a queria agora mais.
Abriram a luz. A profundidade do atelier era recortada por sombras que o pequeno candeeiro não conseguia alcançar. Ela olhou a obra; meses de trabalho que as mãos não enganavam. Avançou e destapou a escultura coberta por um velho lençol. Ali estavam os amantes tal e qual os imaginara.
Antonio Canova
Nota: este é um texto antigo, mas apeteceu-me recordá-lo.
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Este texto faz-me lembrar aquela celebre frase de Michelangelo:
"Como faço uma escultura? Simplesmente retiro do bloco de mármore tudo que não é necessário."
Muito bom o texto :)
Myosotis
1/5/09 10:20E foi bom ir repescar o texto. De resto a esculturae stá igualmente soberba.
abraço
Daniel C.da Silva
1/5/09 10:51Sabes, dizer que adorei é pouco..Contaste-nos a história de um escultor e do seu processo de criação, mas a linguagem tem múltiplos níveis e canais e acabaste por fazer-me pensar em mil outras coisas para além de escultores e obras de arte. Origada!
beijo
Zlati
1/5/09 13:53Lindo!
Lidia Guedes
1/5/09 16:00Myosotis: eu diria mais; ele tirou do mármore tudo o que estava a mais! Uma das estátuas dele (David que está em Florença) obrigou a ir à pedreira escolher o bloco de mármore com que faria a peça. Um bloco imaculado, sem veios, de uma pureza inquestionável, difícil, quase impossível. Depois foi fazer o sobre-humano, espantar o mundo com o colosso.
Quanto ao texto, és uma querida. Obrigado!
Beijos
Daniel: o meu texto é um átomo quando comparado com a escultura. :) Antonio Canova é genial; tive a felicidade de conhecer ao vivo a sua obra em Itália e a espoliada em França no Louvre, como tantas outras (a Mona Lisa...). Fico-te grato pelo exagero do soberbo, Daniel, mas sei que o que escrevi valeu pela ideia.
Abraço
Lisa: não podias fazer melhor elogio, pelo menos um que me corasse! Fico feliz quando faço sentir; as palavras são as armas mais poderosas que temos. :)
Esta estória podia ser muita coisa, aposto que cada um revê um episódio seu ou de outro. :)
Beijo
Lídia: eu? Como sabes... porra, viste o anúncio da Martini, eu sabia! :P
Bom fds, beijos
Aprendiz
2/5/09 04:13Deves ser escultor também, tamanho conhecimento do ritual do escultor. Belíssima narrativa, obra de quem sabe escrever de verdade. Abraço
:.tossan®
2/5/09 05:43cara! primeiro, onde vc está? primavera? europa?
olha, vou voltar depois pra te ler...
a visita foi rápida lá no iilógico, volta depois na calma, como eu, e assente pra ler-me
abraço grande
iILÓGICO
2/5/09 06:31tossan: podia ser escultor, um facto, adoro moldar. Mas não, não sou, a verdade é um primado!
Obrigado por chamares ao texto narrativa, coloco-me então no papel de narrador, mas não sei escrever de verdade, escrevinho, nisso não sou mau! :)
Abraço
iilógico: rápida? Deu para ouvir parte das quatro estações de Vivaldi! :D
Abraço
Aprendiz
2/5/09 07:30Olá Aprendiz :)
Tu tens noção de que escreves maravilhosamente bem, não tens?
Adorei o raio do texto. E o final, sublime!
S*
2/5/09 13:11ninguém poderá descobrir a beleza se já n a possuir dentro de si..
Belo texto.. ;)
Um optimo fds!
abraços!
Karlytus
2/5/09 14:24Ahahah! Convencido :p
Lidia Guedes
2/5/09 16:35Valeu a pena ser repescado!!
:)
alma
2/5/09 16:59Não li tudo, mas a música é bonita.
Fê
2/5/09 17:08Lídia: convencido, eu? Nunca! Antes brincalhão. :P A meio da tarde na net? Aproveita o sol! ;)
beijos
alma: uau... uma visita da "alma", isto é o que se chama uma conversa do além! O impossível foi ultrapassado! :D
Textos antigos, a mesma alma! ;)
beijos
Fê: por momentos pensei que a "fé" tinha vindo depois da "alma"; era demais para um dia só! :D
Não leste... quem diz a verdade não merece castigo; eu faço o mesmo, até com autores consagrados; quando não gosto paro nas primeiras páginas, que se lixe a fama, primeiro está o meu gosto e disposição! É assim mesmo! ;)
A música foi feita por um grupo português; na altura o vocalista tinha menos de 18 anos, por isso a letra é tão simples mas incrivelmente genuína.
Beijos
Beijos
Aprendiz
2/5/09 18:04Muito lindo!
História fantastica.
Bjks.
Annie Manuela
2/5/09 21:53Annie: é uma estória de mármore, sem veios nem cor! ;)
Bjks
Aprendiz
3/5/09 03:19Eu aproveitei bem o sol:) Dediquei só uns minutinhos que estive a almoçar para passar por aqui;)
Bjinho*
Lidia Guedes
4/5/09 18:38Ah e essa música é lindaaaa:)
Lidia Guedes
4/5/09 18:39Olá meu querido.... tem que ser do interior para o exterior! Muito belo seu espaço! Bjinhos da Madrasta!
A Madrasta Má
4/5/09 19:08Lídia: ainda bem, o tempo é a única coisa que não tem preço. Uma vez perdido nunca mais o recuperas. Obrigado pelos minutinhos! ;)
A música é fantástica! Danças?
Beijinhos
Madrasta: do interior para o exterior... da zona raiana para o litoral; expressão ininteligível já que nunca encontrei raias no interior. :)
Este espaço não é meu; só publico posts mas o que interessa está nos comentários de outros. ;)
Beijinhos
Aprendiz
4/5/09 20:34Dançar? Vou tentar aprender:)
Beijinho*
Lidia Guedes
4/5/09 22:39Lídia: não comeces com a salsa; o tempero vem sempre no fim, por isso é o mais difícil! ;)
Beijinhos
Aprendiz
5/5/09 01:07Ahah! Vou ter isso em atenção:)
Beijinho*
Lidia Guedes
5/5/09 12:33Lídia: isso mesmo e não te percas. Boas danças.
Beijinhos
Aprendiz
6/6/09 02:29LINDOOO
SEM PALAVRAS
SHAKI
SHAKI
21/8/09 18:49Shaki: Lindo, não... errado... se fosse mais bonito era horrível!
Ou, como dizem nos call centers... bastam-me mais 5 minutos de conversa para que essa ideia desapareça! :D
Beijinhos
Aprendiz
21/8/09 18:58simplesmente profundo .........
de uma sensibilidade incrivel........
a forma de te expressares...............
da para sentir a tua alma no que transmites........
parabens
ps:quero o autografo
Anónimo
23/8/09 20:01